blog-img

A máxima do filósofo grego Heráclito, “Não há nada mais permanente que a mudança”, é, hoje em dia, extremamente atual e palpável. Vivemos em uma era onde nossa vida digital é tão ou mais importante que nossa vida analógica. Pense em todas as suas contas de redes sociais, e-mails, arquivos em nuvem e até mesmo em moedas digitais. Agora pense como o simples ato de ver a bateria do celular descarregar pode nos causar ansiedade, pois perdemos o acesso imediato a todos esses nossos recursos e informações. Sim, os aparelhos tecnológicos se tornaram uma extensão de nossas vidas, o que torna o valor desses ativos digitais ainda maior.

No mundo de hoje, onde assinar um cheque e enviar cartas quase não existem mais, essa sociedade digitalizada que vivemos, torna o tema ainda mais relevante. E fato é que a sociedade atual não comporta mais as soluções já existentes, ficando nossa legislação com uma lacuna que precisa ser preenchida.

Com a evolução constante das tecnologias e a digitalização de praticamente todas as esferas de nossas vidas, desde comunicações pessoais até transações financeiras, as antigas metodologias de gestão patrimonial e sucessão tornaram-se obsoletas frente ao digital, e a proposta de atualização do Código Civil vem também tratando dessa questão.

Já se perguntou o que acontece com todo esse “patrimônio digital” quando falecemos? Provavelmente nunca, não é? Isso se justifica porque as antigas gerações não possuíam patrimônios digitais relevantes, mas hoje, com uma geração nato digital, a realidade mudou. Atualmente, nosso ordenamento jurídico não oferece uma resposta clara para essa questão, evidenciando a urgente necessidade de regulamentação. Mas como essa regulamentação deve ser desenvolvida?

Este tema já foi objeto de alguns Projetos de Lei no Brasil1 e já possuímos algumas legislações e julgados internacionais sobre o assunto. No Brasil, iniciativas legislativas têm buscado regulamentar a herança digital, refletindo a crescente importância dos ativos digitais na vida cotidiana. No cenário internacional, países como Alemanha2, Estados Unidos3 e Espanha4 já possuem discussões e abordagens sobre a gestão e a transmissão de bens digitais após a morte.

Mas antes de falarmos sobre a sucessão desses bens digitais, precisamos estabelecer quais são eles, e na proposta de atualização do Código Civil incluímos um capítulo inteiro (Capítulo V) denominado “Patrimônio Digital”, onde, dentre outras questões, definimos patrimônio digital da seguinte forma:

 

Art. Considera-se patrimônio digital o conjunto de ativos intangíveis e imateriais, com conteúdo de valor econômico, pessoal ou cultural, pertencente a pessoa ou entidade, existentes em formato digital.

Parágrafo único. A previsão deste artigo inclui, mas não se limita a dados financeiros, senhas, contas de mídia social, ativos de criptomoedas, tokens não fungíveis ou similares, milhagens aéreas, contas de games ou jogos cibernéticos, conteúdos digitais como fotos, vídeos, textos, ou quaisquer outros ativos digitais, armazenados em ambiente virtual.”

 

Agora que entendemos que há uma definição, e que é inegável que hoje as pessoas de fato possuem um patrimônio digital, devemos pensar no que acontece com todos esses ativos e contas quando não estamos mais por aqui para gerenciá-los.

Um primeiro aspecto relevante é que a pessoa, ao se cadastrar em uma plataforma digital, está concordando com os termos ali impostos. Isso traz à baila a necessidade de que as plataformas digitais também se adaptem às novas vertentes do direito. Então quer dizer que com essa atualização estaremos entregando nossa herança digital às plataformas? De forma alguma. Caso a proposta seja aceita, estas precisarão criar mecanismos para respeitar a vontade do titular e os direitos dos herdeiros. Vamos então entender como deve se dar essa sucessão.

A subcomissão de direito digital colocou o respeito à privacidade do falecido como premissa, respeitando tanto sua intimidade, como dos possíveis terceiros e interlocutores envolvidos. Logo, a proposta foi no sentido de que sendo transmitido, este não deve possibilitar o acesso ao herdeiro das mensagens privadas, por exemplo. Mas essa regra comporta a exceção de que mediante autorização judicial, as mensagens poderão ser acessadas.

E mesmo que haja divergência entre doutrinadores, optamos, ainda que não de forma expressa, por dividir o patrimônio digital por naturezas. Essas categorias são: essenciais e personalíssimas, patrimoniais e híbridas.

As essenciais e personalíssimas englobam informações e dados que possuem apenas valor pessoal, como mensagens privadas. São elementos intrinsecamente ligados à identidade e privacidade do indivíduo, e sua gestão após a morte exige uma abordagem cuidadosa que respeite a intimidade do falecido e de terceiros envolvidos.

As patrimoniais5-6-7, por outro lado, incluem ativos que possuem valor econômico agregado. Exemplos disso são criptomoedas, contas de investimentos digitais, milhagens aéreas e outros bens digitais que podem ser quantificados em termos financeiros. A transmissão desses bens é crucial para garantir a continuidade do patrimônio do falecido e a segurança financeira dos herdeiros.

As híbridas, como o próprio nome sugere, possuem características de ambas as naturezas mencionadas. São ativos que, além de terem um valor pessoal significativo, também possuem um valor econômico agregado. Um exemplo típico seria uma conta de mídia social monetizada.

Ponto relevante a ser destacado neste momento, é que os bens digitais que possuem valor econômico agregado, seja puro ou híbrido, integram a herança e devem ser transmitidos aos herdeiros. No mundo atual, onde a economia digital cresce exponencialmente, muitos indivíduos acumulam significativos ativos digitais que possuem valor financeiro. Esses ativos podem incluir criptomoedas, contas de investimentos online, milhagens aéreas e tokens não fungíveis (NFTs), entre outros. A inclusão desses bens na herança é crucial para garantir que o patrimônio do falecido seja devidamente administrado e transmitido aos seus sucessores. O que significa que as plataformas digitais onde esses ativos estão armazenados também precisam adaptar-se às novas realidades jurídicas, implementando políticas e procedimentos que permitam a transferência segura e legal dos ativos digitais aos herdeiros, respeitando as disposições legais aplicáveis.

Mas se apenas os bens com valor econômico são transferidos automaticamente aos herdeiros e integram a herança, como ficam os demais? Estabeleceu-se então, que a transmissão hereditária dos dados e informações contidas em qualquer aplicação de internet, bem como das senhas ou códigos de acesso, pode ser regulada em testamento ou meios administrativos oferecidos pela plataforma.

A ideia é justamente dar o poder de decisão ao usuário, que pode então se utilizar de testamento para tal finalidade, o que é o mais aconselhável, ou definir dentro da própria plataforma este herdeiro (como muitas já fazem, o Facebook, por exemplo) e mais, seguimos o entendimento de que o compartilhamento de senhas ou de outras formas para acesso a contas pessoais será equiparado a disposições contratuais ou testamentárias expressas, para fins de acesso dos sucessores, desde que tais disposições estejam devidamente comprovadas.

Importante é que as plataformas sigam esta regulamentação, ficou-se então definido que quaisquer cláusulas contratuais voltadas a restringir os poderes do titular da conta, de dispor sobre os próprios dados e informações, serão nulas de pleno direito. Desta forma, fica claro que cada um de nós tem o total controle sobre o que quer que seja transmitido para os herdeiros ou não.

Mas e se não houver esta definição pretérita do falecido, as plataformas então ficarão com este conteúdo para elas? Não, ficou também definido que os sucessores ou representantes legais do falecido poderão pleitear a exclusão ou a manutenção da sua conta, bem como sua conversão em memorial, garantida a transparência de que a gestão da conta será realizada por terceiro.

Isso assegura que, mesmo na ausência de instruções explícitas, os herdeiros legais não fiquem sem alternativas. Eles poderão decidir o que fazer com as contas e os dados do falecido, sempre com o respaldo legal para agir conforme os melhores interesses da memória e privacidade do titular. Este mecanismo evita que as plataformas digitais mantenham indevidamente o controle sobre dados respeitando assim os direitos dos herdeiros.

Mas e se não houver sucessores para aquela conta? Este aspecto também foi pensado e no caso de contas públicas de usuários brasileiros falecidos, que não deixarem herdeiros ou representantes legais, essas contas devem ser excluídas em até 180 dias a partir da comprovação do óbito. Essa medida é fundamental para evitar que dados e informações pessoais permaneçam online indefinidamente. O que contribui tanto para uma melhor gestão de dados pelas plataformas digitais, que não precisarão manter contas inativas sem propósito definido, quanto assegura que a memória digital do falecido seja tratada com respeito e dignidade. Ao remover contas públicas sem sucessores, evitamos situações em que perfis ou conteúdos possam ser utilizados de maneira inadequada ou prejudicial à imagem do falecido.

Não resta então dúvidas que a proposta de atualização sugerida neste tema, visa o respeito a vontade do titular e o direito dos herdeiros, e em nenhuma hipótese garante que a herança digital de um indivíduo seja entregue às plataformas digitais.

Salienta-se ainda que o titular de um patrimônio digital tem o direito à proteção plena de seus ativos digitais, incluindo a proteção contra acesso, uso ou transferência não autorizados. Os prestadores de serviços digitais devem garantir medidas adequadas de segurança para proteger o patrimônio digital dos usuários e fornecer meios eficazes para que os titulares gerenciem e transfiram esses ativos com plena segurança, de acordo com a sua vontade.

Isso denota que o viés da regulamentação é fazer com que as plataformas criem medidas para assegurar os direitos do usuário, do falecido e de seus sucessores. As plataformas digitais devem adaptar-se a essas exigências, implementando políticas que respeitem a privacidade e a vontade do titular, além de garantir que os herdeiros possam acessar e administrar os bens digitais de forma segura e conforme a lei. Essa abordagem visa a proteção integral do patrimônio digital, alinhando-se às necessidades contemporâneas.

Sendo assim, é evidente que a proposta de atualização do Código Civil em relação ao patrimônio digital é uma medida essencial e oportuna. Vivemos em um mundo cada vez mais digitalizado, onde nossa presença online e nossos ativos digitais têm valor significativo, tanto econômico quanto pessoal. Garantir que esses bens sejam adequadamente protegidos e transmitidos aos herdeiros é uma questão de justiça e respeito pela vontade do titular.

A regulamentação proposta não só oferece segurança jurídica, mas também assegura que a memória digital dos indivíduos seja tratada com a devida consideração. Ao definir claramente como os bens digitais devem ser geridos após a morte, protegemos não apenas o valor econômico desses ativos, mas também a privacidade do falecido. As plataformas digitais, por sua vez, são incentivadas a criar mecanismos robustos que respeitem e facilitem a gestão desses bens conforme a vontade dos usuários.

Em suma, a atualização do Código Civil para incluir disposições sobre patrimônio digital é um passo crucial para alinhar nosso ordenamento jurídico com as realidades deste século. Ela oferece uma estrutura clara e justa para a gestão de bens digitais, garantindo que a vontade do titular seja respeitada e que os herdeiros possam acessar e administrar esses ativos de forma segura e eficiente. A proteção do patrimônio digital não é apenas uma questão legal, mas um imperativo moral em uma era dominada pela tecnologia.

Assim, podemos olhar para o futuro com a confiança de que nossas vidas digitais serão tratadas com o cuidado e respeito, assegurando um legado justo e bem gerido para as gerações vindouras.

 

Fonte: Migalhas